A ponta do iceberg


Com a proliferação dos blogs e a multiplicação dos estilos, a poesia se expande e ganha vitalidade

Antonio Miranda
Especial para o Correio
Carlos Vieira/CB - 24/10/07
Miranda: quanto maior a base, maior a parte visível
"Curiosamente, hoje, o artigo do dia é poesia. nos bares da moda, nas portas do teatro, nos lançamentos, livrinhos circulam e se esgotam com rapidez. (...) Mesas-redondas e artigos de imprensa discutem o acontecimento. O assunto começa — ainda que com resistência — a ser ventilado nas universidades. (...) O fato é que a poesia circula, o número de poetas aumenta dia a dia e as segundas edições já não são raras. Frente ao bloqueio sistemático das editoras, um círculo paralelo de produção e distribuição independente vai se formando e conquistando um público jovem que não se confunde com o antigo leitor de poesia. Planejadas ou realizadas em colaboração direta com o autor, as edições apresentam uma face charmosa, afetiva e, portanto, particularmente funcional. (...) o que sugere e ativa uma situação próxima do diálogo do que a oferecida comumente na relação de compra e venda, tal como se realiza no âmbito editorial. A tal propósito, convém lembrar a tão freqüente presença do autor no ato da venda, o que de certa forma recupera para a literatura o sentido de relação humana."

O texto em epígrafe é da pesquisadora Heloísa Buarque de Hollanda no prefácio de sua antologia 26 poetas hoje (editora Aeroplano), com os textos de poetas contemporâneos representativos das novas linguagens poéticas, incluindo excepcionalmente os falecidos Wally Salomão e Torquato Neto, considerados pioneiros. O que mais vale ressaltar na análise da antologista é a causa (principal?) da aproximação da poesia com o público:

"A presença de uma linguagem informal, à primeira vista fácil, leve e engraçada e que fala da experiência vivida contribui para encurtar a distância que separa o poeta e o leitor. Este, por sua vez, não se sente mais oprimido pela obrigação de ser um entendido para se aproximar da poesia." (Heloísa Buarque de Hollanda)

Estaríamos diante da dessacralização do exercício poético, que sai da torre-de-marfim e é absorvido e reelaborado por um público amplo, criador de novas formas, muitas delas coletivas, mas sem a proposta monolítica das vanguardas anteriores. Sem cânones, sem ortodoxias, embora seja possível à academia, que começa a estudar o fenômeno, categorizar as novas linguagens e explicar algumas tendências e estilos, como pretende o lingüista e poeta Antonio Vicente Pietroforte, da USP. É óbvio que a falta de regras e modelos leva à perplexidade e a equívocos evidentes, por se transformar em "modismo" e "diluição", ou seja, "em mero registro subjetivo sem valor simbólico e, portanto, poético", no entender de Heloísa Buarque de Hollanda. Perplexidade que também infesta as artes plásticas (instalações, intervenções urbanas) e performáticas dos tempos atuais.

De qualquer maneira, não há como não reconhecer a expansão e a vitalidade da poesia na sociedade do início deste século e milênio, mesmo sem o apoio oficial (ou por causa disso...), sem a infra-estrutura da grande industria editorial. Mas com a crescente abertura da universidade, apesar das resistências.

A poeta e pesquisadora Sylvia Cyntrão, da UnB, líder de um grupo de pesquisa sobre poesia (registrado nas agências de financiamento), reconhece que o início foi difícil. Poesia? Não havia muitos alunos interessados. Agora a situação é bem diferente. E ela está organizando o Simpósio de Crítica de Poesia, que vai acontecer na 1ª Bienal Internacional de Poesia de Brasília (de 3 a 7 de setembro de 2008).

A proliferação de poemas-show, recitais abertos em bares e em salas de aula, e até nas ruas, não se dá apenas no Brasil, mas em muitos países. A web como base e a internet como veículo vêm permitindo à poesia um espaço privilegiado para o registro e a difusão de textos poéticos, formando verdadeiras redes sociais com os autores e leitores, de poesia convencional ou visual, em todos os estilos e temáticas. E se firmando com a proliferação de blogs de poesia, além das páginas e repositórios próprios.

Páginas individuais se multiplicam aos milhares, não apenas incluindo a produção solitária, mas congregando grupos de ativistas, apontando para outros endereços afins. E-books e textos virtuais agora são gratuitos. Já existem estudos específicos, com metodologias complexas e sofisticadas como os top maps e as redes hiperbólicas, tentando explicitar e compreender tais relações criativas e associativas.

Certamente que a multiplicação de poetas e leitores tem repercussão e desenvolvimentos incontroláveis, mas não de todo imprevisíveis. Como acontece com toda atividade social intensa, alguma ordem se impõe, estilos se multiplicam, lideranças surgem e as celebridades aparecem por caminhos próprios, já libertas das amarras das grandes editoras e da própria crítica, que já não tem mais os espaços tradicionais para se manifestar.

Em verdade, o consenso se faz de forma mais aberta, as opiniões se multiplicam sem muita teoria e normas, causando as perplexidades já referidas anteriormente. A julgar pelo que acontece com a música, com os esportes e outras atividades de massa, a poesia vai firmar-se em estilos e correntes visíveis e muitas acabarão sendo absorvidas e industrializadas para o consumo, com a melhoria técnica de sua produção e até com a banalização dos métodos de criação e entendimento. Mas com a certeza de que o crescimento da atividade dará lugar a patamares altos de qualidade e a vanguardas e elites que estarão em melhores condições de criação e uso. É inevitável: a melhor poesia acabará sendo privilégio de poucos, mas fica o consolo de que deixará de ser para o usufruto de uns poucos para ser de muitos.

Vale lembrar o exemplo do iceberg. Se há uma ponta é porque existe uma base ampla de sustentação. Maior a base, maior a parte visível. Milhares de blogs serão acessados em escala quase doméstica, outros serão o território de tribos enormes e alguns conquistarão multidões como galáxias em expansão, crescendo, desaparecendo, numa dinâmica que tentaremos acompanhar, compreender e usufruir.

Professor da UnB, Antonio Miranda é o diretor da Biblioteca Nacional de Brasília

Fonte
: Pensar, Correio Braziliense, 26/01/2008

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