Dona Nenen


Dona Nenen do Cravinho luta contra o sono que vem com a tarde macia. Quer é pensar no caixão, na carneira, na mortalha completa, nos botes de vela, que já são em número de vinte; gosta de matutar sobre os preparativos para o grande dia. A fronte retesa, nessas horas. Dará conta de cuidar de tudo até o último momento? E quando chegar a malfadada hora? Quem a banhará? Não esquecerá de perfumá-la com alfazema? Será que a penteará com carinho, sem quebrar os cabelos delicados? A cama estará asseada? Terão cuidado de não deixar homem no quarto? Meu Deus! Vai é deixar tudo pronto, em ponto de bala — como diria o bom Gustavo. Melhor se prevenir. Afobação em sentinela pode ser ruim. E o café para servir às amigas no velório? Quem o coará? Pode convidar Finfilóquia, ou a sobrinha que mora em Wanderley, para cuidar do café e fazer sala às visitas — as últimas, e por isso mesmo merecerão muita atenção. É, assim será, ou uma ou outra. Contudo, comprará mais um vidrinho de alfazema, para o caso de um não ser suficiente para a ablução derradeira.

Trecho de conto que escrevi aos 16 e reescrevi há coisa de meia dúzia de anos.
Fala de uma estranha senhora, que morava na Vila Brasil, em Barreiras, no Oeste da Bahia. Ela mantinha em sua casa um caixão, reluzente, bem-cuidado. E disso não fazia segredo para ninguém. Fui até lá entrevistá-la para o jornal do amigo Kinkão.

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