PENSAR. A vitóra do silêncio


A proibição da venda do livro sobre Guimarães Rosa, escrito por Alaor Barbosa, representa uma aberração, ainda mais por envolver o autor de uma obra plena de liberdade



Ricardo Lísias

Especial para o Correio

De vez em quando, surge a notícia de que um livro foi retirado de circulação no Brasil por ordem judicial. Recentemente, o caso mais famoso é o da biografia Roberto Carlos em detalhes, do historiador Paulo César de Araújo. Menos discutido, mas igualmente grave, é a recolha de Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa, estudo que o escritor brasiliense Alaor Barbosa, que vem de se destacar no concorridíssimo Prêmio Leya, publicou em 2007 pela Editora LGE. Em um processo movido pelos herdeiros do autor de Sagarana, o livro de Barbosa foi recolhido por decisão liminar. Logo o imbróglio entrará em fase de julgamento.

Parece espantoso que uma argumentação tão frágil como a que defende os herdeiros de Guimarães Rosa tenha obtido uma vitória, mesmo apenas em decisão liminar. Alega-se, por exemplo, que Barbosa escreveu o livro com intenções comerciais. Será que a reivindicação é que o volume não seja vendido? Além disso, as chances de um livro como esse tornar-se um best-seller são nulas. Por fim, tal argumento pode simplesmente ser revertido. Não é o caso, naturalmente, mas tirar esse livro de circulação talvez também pudesse ser um ato de natureza comercial. Assim, o similar redigido por uma das herdeiras não encontraria concorrência. Não deve ser essa a intenção do processo, mas meu raciocínio é meramente lógico. Se a justiça aceitar, abrirá uma jurisprudência perigosa e pouco afeita ao debate e à circulação das ideias.
Há ainda uma controvérsia sobre possíveis equívocos cometidos por Barbosa no texto, manifestamente na contracapa. Questões como essa, porém, parecem-me mais civilizadamente discutidas no âmbito do embate intelectual. Por que, então, não escrever um texto crítico sobre Sinfonia Minas Gerais, listando todos os possíveis erros do livro? É assim que um país amadurece, e não levando questões de crítica literária para os tribunais.

Falta ainda discutir um detalhe fundamental: o direito à história. Todo povo precisa ser livre o suficiente para, por meio do franco debate, construir inúmeras linguagens sobre o seu passado, o seu acervo artístico e simbólico e as suas tradições. Aqui entramos numa questão decisiva: a estatura de João Guimarães Rosa. Um artista desse quilate não pode ficar à mercê de caprichos de qualquer ordem e muito menos dar ensejo a filigranas jurídicas. Ao contrário, a obra de Guimarães Rosa, um patrimônio cultural da humanidade, merece ser lida, discutida, esquadrinhada por todos os lados, debatida, citada e continuamente confrontada. Pensar que um trabalho dessa estatura precisa de guardião é no mínimo subestimá-lo.

O processo contra Alaor Barbosa, assim, prejudica uma nação carente de bens culturais de alta extração. Se a justiça proíbe o franco debate de ideias sobre o autor de Grande sertão: Veredas, teremos que diminuir a voltagem das discussões, o que tornará nosso país ainda mais atrasado.

Cerne da ficção

Lembro ainda que Guimarães Rosa sempre fez da liberdade um de seus principais temas. Em anos em que os direitos civis ainda engatinhavam, sua obra já tratava de questões que apenas hoje são um pouco mais abertamente discutidas. Tal processo, portanto, é contrário ao cerne da ficção do escritor que os herdeiros, inadvertidamente, pensam estar defendendo.

Por fim, há ainda um vexame envolvendo toda essa questão: a participação da editora Nova Fronteira, que também assina o processo. A casa de autores como Thomas Mann (que fugiu da Alemanha nazista), Elias Canetti (um dos grandes estudiosos da natureza autoritária do século 20) e ninguém menos que Jean Paul Sartre, que elevou o conceito de liberdade a patamares inéditos e de extrema dignidade, contraria agora o próprio catálogo ou revela nenhum compromisso para com ele. Alguém tem dúvida do que Sartre e Simone de Beauvoir, também autora da Nova Fronteira, diriam sobre esse processo?

Para que o Brasil cresça culturalmente, para que nunca mais a censura vigore por aqui, para que as ideias sejam debatidas com liberdade, para que as questões avançadíssimas de Guimarães Rosa façam eco em seu próprio país, para que possamos comemorar a liberdade de expressão em uma nação madura, o livro Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa, de Alaor Barbosa, deve voltar às livrarias o mais rápido possível.

Ricardo Lísias é escritor, autor de, entre outros livros, Duas praças e Anna O e outras novelas


Memória

O primeiro volume de Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa consumiu décadas de pesquisa de Alaor Barbosa, mas acabou proibido de circular por decisão do juiz Marcelo Almeida de Moraes Martinho, da 24ª Vara Cível do Rio de Janeiro. Editado pela LGE, o livro analisa a obra do escritor mineiro e narra memórias dos encontros de Alaor com o autor de Grande sertão: veredas. Deveria ter chegado às lojas no ano passado. No entanto, Vilma Guimarães Rosa, filha do autor, entrou com processo de indenização contra Barbosa por achar que o livro fere seus direitos autorais sobre a obra do pai. O processo, movido em parceria com a Nova Fronteira, editora de Rosa, levou a LGE a retirar 700 exemplares de circulação em outubro de 2008.

Fonte: Pensar, Correio Braziliense

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