O labirinto de Borges


Edição bilíngue reúne sete livros de poesias de um dos gigantes da literatura universal



Alexandre Pilati
Especial para o Correio
Companhia das Letras/Divulgação
Poesia — Jorge Luis Borges
Tradução de Josely Vianna Baptista. Companhia das Letras, 648 páginas, R$ 65.
No poema "Um lobo", de Jorge Luis Borges, há uma imagem fortíssima, na qual vemos o faro para o mistério e o movimento típico do poeta que logrou ser maior que a própria literatura nacional onde surgiu. Os versos a seguir iniciam o poema, que encontra-se em Os conjurados, livro de 1985: "Furtivo e cinza, na penumbra última,/ vai deixando as suas pegadas na margem/ deste rio sem nome que lhe saciou/ a sede da garganta e cujas águas não repetem estrelas. Esta noite/ o lobo é uma sombra que está só". Uma hipótese bem plausível para a leitura desse emaranhado de obscuridade é a de que estamos diante de uma figuração da própria empreitada poética de Borges, especialmente em sua fase madura. Embora lobo, não o flagramos na violência da ação predatória, mas no caminhar furtivo e cinza do animal entre a penumbra. Caminhar que, todavia, deixa marcas por onde quer que passe. O signo da sombra estende-se sobre o texto e retira a ênfase a tudo. Mais do que símbolo evidente, a sombra é lógica imanente do poema, pois está na sintaxe, no léxico, na fonética, no hiato lírico que se estabelece entre poeta e lobo. Este e aquele compactuam com a penumbra. Tudo, até o texto, portanto, é escuridão e o lirismo de Borges não mais espelha estrelas. Mas é aí que se verá o seu vigor — na permanência da pergunta. Metapoema sobre os limites do fazer poético? Canto negativo em tom equilibradamente tenso? Preparação serena para o fim, para a morte? A indagação assombra, sem resposta; o enigma impõe-se ao poema e à análise: Borges é o lobo do homem.

A sombra, a partir do que de relance vimos acima, estende-se como um estigma sobre os versos do argentino e se configura como um dos signos fundamentais dos livros de poemas do "tempo de madureza" do Borges poeta. Tais livros agora são reunidos no volume Poesia — Jorge Luis Borges (2009), que integra a coleção Biblioteca Borges, da editora Companhia das Letras. Seja bem-vinda esta edição bilíngue que reúne sete livros de poesia do autor, publicados originalmente entre 1969 e 1985. A edição dá sequência ao projeto de publicação das obras do bruxo portenho e, de modo especial, completa uma mirada ampla sobre sua poesia, estabelecendo um contraponto à já publicada Primeira poesia (Companhia das Letras, 2007), que apresenta uma reunião de livros de poemas publicados nos anos 1920. No contraponto, entre as frestas dos versos, quando postas especularmente face a face, madureza e juventude poética revelam dois Borges que vivificam o problema do qual sua poesia é a mais inquietante configuração. Um problema no seu caso enfrentado com o talento e a coragem que separam o grande autor do mistagogo.

Sendo o gênero lírico aquele que mais nevralgicamente apresenta a dimensão das contradições, é na Poesia madura de Borges que seu problema se impõe como um inexorável desafio crítico. No conjunto de textos, cuja primeira coletânea remete a um não tão longínquo assim 1969. Nesta altura do século, digamos com risco de tautologia: Borges já era Borges. Mais do que isso: Borges sabia bem o que era ser Borges. Para alguns, talvez até para ele mesmo, isso quereria dizer um perfeito exemplar da pós-modernidade. Borges chegara a ser, assim, o próprio estilo clássico-moderno que seria preciso copiar pela plena poesia da maturidade, cujo destino estaria já traçado e acabado. Notemos que esse caráter de acabamento é assumido pelo próprio projeto editorial, que considera esta produção madura "a" poesia borgeana, acabada, perfeita como um "aleph", enquanto a dos anos iniciais não passaria de "primeira poesia", momento de aprendizado, cujo horizonte seria uma futura superação. Tudo como a ocupar lugar em certa equação mística que sempre impôs algum véu à leitura do poeta argentino.

Essa poesia madura apresenta traços, em termos de conteúdo ostensivo e estrutura aparente, que confirmam o "mito Borges", recontado por ele mesmo. Estão ali elementos como a escavação genealógica do gênio do poeta; o culto do homem de letras cosmopolita, cujo mundo (último e primeiro) é a biblioteca e seu emaranhado de labirintos; a literatura que se reforça e se exibe como desvencilhada das práticas sociais; uma originalidade que se apoia fortemente nos meandros impalpáveis, mas não menos fascinantes, do terreno do inefável. Tudo isso são feixes que atravessam não apenas a expectativa dos leitores de Borges acerca de sua obra, como também o tônus poético cosmopolita que a custo ele próprio forjara e que ele sabia ser absolutamente necessário replicar, a fim de dar continuidade a um projeto de universalização do ponto de vista literário periférico sob o signo da "espiritualização da poesia". Diríamos, mais uma vez, que aqui se trata de uma pauta "pós-moderna" — aquela a que os livros de poemas publicados entre 1969 e 1985 respondem, reforçando a posição da literatura de Borges como uma espantosa e mágica epifania do supranacional canônico.

Entretanto, é curioso como essa poesia, pós-moderna em relação ao próprio argentino, ganha ainda mais vida e impõe ainda mais labirintos sob o prisma enunciado pelo crítico italiano Alfonso Berardinelli. Segundo ele, a pós-modernidade de Borges é "carregada de história e é ambientada familiarmente numa tradição secular, tornada de novo acessível em todas as direções", isso ainda que o poeta, no prólogo à sua Antologia pessoal, reconhecesse que o que mais poderia perturbá-lo e envergonhá-lo seria a presença da "cor local" em sua obra. A avaliação de Berardinelli parece contraditória em relação ao objetivo, reforcemos sempre, muito bem-sucedido de Borges de aderir a uma linguagem poética de superação do localismo e de uma diluição delibera no cosmopolitismo. No entanto, ela é coerente com a premissa crítica de que uma linguagem (por pura e inefável que seja) não se forja senão dentro de condições históricas. É na fenda das contradições deste mistério (bem mais palpável) que se monta a poesia madura de Borges, levando-nos a leituras bem mais labirínticas do que aquelas que compram de cara o jogo de cosmopolitismo ostensivo do autor.

No prisma das contradições entre local e particular, serão melhor aproveitados os mistérios de uma voz lírica que diz sobre sua cidade: "O que será Buenos Aires?/ [...] É o cômodo da Biblioteca, no qual descobrimos, por volta de 1957, a língua dos ásperos saxões, a língua da coragem e da tristeza". E também aproveitaremos o dilacerado resgate efetuado pelo olhar do homem culto e refinado do grande símbolo nacional, desparticularizado, alçado à condição dolorida do isolamento humano à ocidental em "O gaúcho": "Foi tantos e hoje é uma quieta/ Peça que move a literatura". Um tipo sobretudo humano, que nunca teria dito, segundo o poeta, "sou gaúcho", mas que se integrou ao cosmos pela mais funda solidão humana. Este movimento de tensões, entre o cosmopolita e o nacional, é o tema da crítica Beatriz Sarlo. "Não existe escritor mais argentino do que Borges: ele se indagou, como ninguém, sobre a forma de fazer literatura numa das margens do Ocidente", diz Sarlo em Jorge Luis Borges — Um escritor na periferia.

Artefato místico
A poesia como artefato místico é um dos elementos dessa necessidade ocidentalizante dos versos de Borges, que, no entanto, não perde a noção de que um poeta trabalha sempre em "seu minucioso labirinto inútil". O reforço do elemento etéreo do ocidente não deixa de ser também um sintoma de que o poeta junta cacos de mitos, na tentativa, malograda sempre, de restituir ao mundo da alienação e da reificação os elementos do sagrado. Um sagrado que, no poeta argentino, sempre é mundano, pois consciente de que "a vida não é um sonho, mas pode/ chegar a ser um sonho", num verso em que cita Novalis.

As ilusões de Borges não compactuam com o ilusionismo fácil. Elas emanam de um grande autor que na poesia soube como poucos exibir o encantamento poético num molde que não elide as exigências da contraditória realidade periférica. Sobre a obra de Borges, o brasileiro Ferreira Gullar faz uma curiosíssima afirmação: "Entendo que a realidade é às vezes tão insuportável que a gente só pensa em escapar dela. Borges é isso. E é bem latino-americano. Mas como a malária". Este é o labirinto latino-americano que as leituras de reforço ao mundo místico de Borges rejeitam, quiçá por temor. Um temor de encontrar-se com o ponto de partida histórico (seria impróprio sonhar com luta de classes?) dessa elaboração poética de imenso valor (latino-americana como a malária?). Temor de ver, nesse ponto de vista, um espelho que devolve interrogação e alteridade a quem o contempla. Perguntemos, então, com Borges: "Por que persistes, incessante espelho?".

DOIS POEMAS

Elegia da pátria
De ferro, não de ouro, foi a aurora.
Forjaram-na um porto e um deserto,
Mais uns tantos senhores e o aberto.
Espaço elementar de ontem e agora.
Veio depois a guerra com o godo.
Sempre o valor e sempre a vitória.
O Brasil e o tirano. Aquela história
Desenfreada. O todo pelo todo.
Datas vermelhas dos aniversários,
Pompas de mármore, árduos monumentos
E pompas de palavra, parlamentos,
Centenários e sesquicentenários,
São apenas a cinza, a menor flama
Dos vestígios de uma antiga chama.

De A moeda de ferro (1976)

***

A soma

Ante a cal de uma parede que nada
nos impede de ver como infinita
um homem assentou-se e premedita
traçar com rigorosa pincelada
na alva parede o universo cabal:
portas, balanças, tártaros, jacintos,
anjos e bibliotecas, labirintos,
âncoras, o infinito, o zero, Uxmal.
Povoa de formas a parede. A sorte,
que curiosos dons reparte o gosto,
permite-lhe dar fim a sua porfia.
No momento preciso de sua morte
descobre que essa vasta algaravia
de linhas é a imagem de seu rosto

De Os conjurados (1985)

Alexandre Pilati é doutor em literatura brasileira e poeta, autor de Prafóra (7Letras, 2007)
Fonte: Correio Braziliense, 30.05.2009


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