Se temes as estrelas

Se temes as estrelas
E o manto quente do sol
E as labaredas de luz da lua nova
E o frescor infinito do mar, no verão
E todas as cores dos peixes azuis
E todos os olhos pequeninos dos colibris

Se foges das gotas de chuva
E te abrigas sob casebres às vezes tristes
Ou sozinha ficas e choras também
Onde espreitas, pelas fendas estreitas da velha madeira,
Os olhos do mundo os assovios das palmeiras
E os volteios de borboletas
Que amas - e temes

Se achas que o sorriso no inverno fere teus lábios débeis
Se te escondes da força de olhos negros (ou azuis de um azul
Que não entendes)
Se te inquietas com tanto amor, tanta vida,
Tantos rodopios suaves das meninas em flor,
Com os gracejos-dentes-de-cana-açúcar dos meninos...

Precisas conhecer a teia
Que vai enredando a felicidade
Em cada um de nós!

ii.

O sorriso da alma está no olhar o céu
E perceber a dança de pássaros
E, mesmo sem estes aventureiros de árvores e anis,
Imaginá-los em loopings e bandos de meninos-pássaros
E moças-pássaras

Ou o sorriso vem na brisa que nos toca o peito
E nos enleva os pensamentos de nós-como-somos-mesmo:
Doces criaturas de Deus!

iii.

No livro que não leste ainda
No quadro que não viste ainda
E nas corridas de animais estranhos
E nas páginas rotas e antigas de alfarrábios
Histórias de amores medievais, de lutas por reinos e donzelas
Em belas películas de Wenders, onde anjos são como pessoas
São como anjos as pessoas
E um outro querubim amou uma mulher trapezista

Em jarros árabes de flores sírias
Em historietas antigas de E. R. Burroughs
Em quadrinhos westerns de Berardi ­ conheces o Giancarlo?
Ele criou o fabuloso Ken Parker:
Tão suntuosamente desenhado pelo Milazzo
(Que o pensou um ator americano)
Ah! a história de Lilith, a cadelinha que salvou o Ken da morte no gelo

Em tudo há a vida, amiga!
Vendo-lendo as crianças no dorso da Vaca Voadora
(Como os li, e também ao Soprinho, mágico, estranhamente)
Folheava as páginas tenras - folhas-vivas!
Enquanto chovia ao meu lado, e eu comia beiju

E o mundo era assim! Bom e belo

iv.

Se temes as estrelas
E o manto quente do sol
Retira-te por cem dias do claustro da vida
Que te rodeia
E volta a sonhar
Ao lado de passarinhos
Peixes
Nuvens
E assovia e reza e canta baixinho
Chamando a chuva
Para que, agasalhada, possas dormir, sozinha,
Sonhar, sorrindo, enlevada com Deus presente,
E acordar, já de noitinha, com um livro de belos poemas da Cecília
Ao teu lado, te fazendo companhia, em vigília por teus sonhos
Agacha-te, cheira as páginas mornas, acaricia-as
Depois senta-te à mesa e lê os murmúrios dos versos como corações expostos
E, se tens um violão, vai ao alpendre, mira a Grande Lua, e canta
Entoa loas, litanias e velhas canções

Se foges das gotas de chuva
E te abrigas sob casebres às vezes tristes
Canta, dança!
Tens a clareza da paz alquímica ao teu alcance
Que Deus, num êxtase divino,
Após oblações feitas com o auxílio de hordas de serafins
Soprou sobre os mundos vilas e quintais
A paz veio desse deus-sopro!

(2001, aproximadamente)

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