Afobação em sentinela pode ser ruim*


Dona Nenen do Cravinho luta contra o sono que vem com a tarde macia. Quer é pensar no caixão, na carneira, na mortalha completa, nos botes de vela, que já são em número de vinte; gosta de matutar sobre os preparativos para o grande dia. A fronte retesa, nessas horas. Dará conta de cuidar de tudo até o último momento? E quando chegar a malfadada hora? Quem a banhará? Não esquecerá de perfumá-la com alfazema? Será que a penteará com carinho, sem quebrar os cabelos delicados? A cama estará asseada? Terão cuidado de não deixar homem no quarto? Meu Deus! Vai é deixar tudo pronto, em ponto de bala — como diria o bom Gustavo. Melhor se prevenir. Afobação em sentinela pode ser ruim. E o café para servir às amigas no velório? Quem o coará? Pode convidar Finfilóquia, ou a sobrinha que mora em Wanderley, para cuidar do café e fazer sala às visitas — as últimas, e por isso mesmo merecerão muita atenção. É, assim será, ou uma ou outra. Contudo, comprará mais um vidrinho de alfazema, para o caso de um não ser suficiente para a ablução derradeira.

* trecho de Dona Nenen do Cravinho, conto escrito em 1983 e revisto em 2002.

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