Asas do Desejo (Der Himmel ünder Berlin, de Wim Wenders, ALE, 1987)


No desenrolar dos acontecimentos contemporâneos, a humanidade por si só assistiria sua autodestruição. Até Deus (quem diria?), profundamente desapontado, decide dar às costas ao mundo para sempre. No entanto, alguns anjos se rebelam e preferem tomar partido do Homem, que merece uma segunda chance. Em sua fúria (quem diria?), Deus expulsou tais anjos do paraíso para a cidade que, até então, era considerada a pior de todas na Terra: Berlim. E tudo isto aconteceu no final da Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha estaria completamente devastada pelos efeitos da guerra e que, mais tarde, veria o seu próprio território dividido por um muro que separaria os comunistas dos capitalistas. Então, esses “anjos caídos” estariam aprisionados a essa cidade, sem qualquer chance de perspectiva, sem poder iluminar os homens, sem poder intervir no curso da história...

Assim seria o prólogo de Wim Wenders para Asas do Desejo, considerado um dos melhores filmes do século XX e um dos mais comentados até hoje. Eu repito: seria! Mas não é. Wenders não tinha a intenção de contar uma história de caráter religioso, nem mesmo chegou, a princípio, a pensar em criar personagens que fossem anjos. Na época, o cineasta alemão estava há bastante tempo nos EUA e decidiu voltar a Berlim para fazer um filme sobre a sua cidade natal (já que para Wenders, o roteiro de um filme floresce a partir de um local, de uma cidade, antes mesmo dos personagens ou das situações). “Como falar de Berlim em sua totalidade?”, perguntava-se. Até que chegou a conclusão de que nem taxistas, nem bombeiros, nem prostitutas, nem outro habitante desta cidade podia dar conta de Berlim em sua expressão máxima. O que fazer então? Ninguém melhor que um anjo (o não-ser homem) poderia visualizar Berlim no seu todo, à maneira de um estrangeiro, que observa a cidade de um ponto-de-vista de quem está de fora. Portanto, convém logo lembrar no início deste ensaio que os anjos de Asas do Desejo não são meramente figuras divinas, mas essencialmente metáforas para o olhar do próprio Wenders sobre Berlim, que já não reconhecia a cidade natal que tanto amava.

Logo no início do filme, temos o prazer de escutar a sonoridade de uma poesia sobre o “estado das coisas” da infância. De certa forma, as crianças também são dotadas deste olhar do estrangeiro. Só as crianças conseguem visualizar os anjos, pois são semelhantes a eles. É na fase pueril que começamos a construir nossa história, nosso conhecimento de mundo. “Quando a criança era criança, não sabia que era criança, tudo era cheio de vida e a vida era uma só! Quando a criança era criança, não tinha opinião... não tinha hábitos... sentava de pernas cruzadas, e saía correndo...” Comparar os anjos com crianças leva tanto Damiel como Cassiel a se comportarem como personagens sem biografia, que observam os objetos e os homens com inocência e curiosidade. Daí que eles observam tudo em preto-e-branco, porque não podem sentir como seres humanos. Mas será que os homens percebem a magnitude ontológica de enxergar a vida a cores? Bem, para aquele que já está acostumado com um “estado das coisas”, tal benefício seria apenas um consolo. Como o pai que carrega uma criança nas costas apaticamente pensa: “o consolo de ver as cores iluminadas pelo sol nos olhos de todos”.

Só que Damiel quer ser humano. Ele prefere se desfazer de sua imortalidade para se perder no colorido de Berlim. E aí, feito criança, começa a questionar sua existência. “Por que eu sou eu e não você? Por que eu estou aqui e não lá? Quando começou o tempo e onde termina o espaço? Será que a vida sob o sol nada mais é que um sonho? Será que o que vejo, escuto e cheiro não é mais que uma miragem do mundo anterior ao mundo? Será que o mal existe mesmo e pessoas realmente más? Como pode? Eu que sou eu, não existia antes de existir e que alguma vez eu, aquele que sou, não serei mais quem sou?” Bastante inspirador (e tentador) para um anjo que antes tinha apenas o conhecimento espiritual do mundo, que não podia tocar os objetos, mas apenas alcançar a sua forma ideal (quem lê Platão sabe do que eu estou falando). É, meus amigos... A eternidade cansa! Um anjo nunca poderia ter o prazer de sentir os pés no chão, uma rajada de vento, o gosto de uma refeição ou até mesmo, “sentar no lugar vazio de uma mesa de jogos e ser cumprimentado”. Ou como lembra o companheiro Cassiel: “Supor, em vez de saber. Se entusiasmar com o mal, ser selvagem... ser sozinho.”

E agora Damiel? Qual será o seu destino (se é que anjo tem destino)? Você quer mesmo ser homem? Bem, seguir a opinião de outros anjos caídos já não é uma boa opção. Veja só o ex-arcanjo, que agora é um velho contador de histórias, que reclama de sua solidão devido ao isolamento dos alemães provocado pelas fronteiras do Muro de Berlim. “Ainda existem fronteiras? Sim, cada um tem a sua. Entre cada lote tem uma faixa de terra de ninguém. Quem entrar, cairá em armadilhas ou será golpeado por raios laser. (...) O povo alemão se dividiu em tantos estados quanto existem indivíduos. E estes pequenos estados são móveis. Cada um leva o seu consigo e pede pedágio a quem entra.”, afirma aquele que há muito tempo constatou que a desconfiada alma do alemão, cansada de tanta guerra, já não pode ser mais conquistada sem um aviso, sem uma “senha”.

Quando tudo parece aparentemente perdido, surge a mulher. Damiel se apaixona por Marion, uma trapezista decepcionada com o circo. Há dez anos, ela era a estrangeira que olhava para a “falsa imagem” do mundo circense com um certo encanto e a curiosidade de um anjo. Mas o tempo (que não cura todas as feridas) fez Marion enxergar a realidade e a trapezista aprendeu a sobreviver, ainda que na corda bamba. “Aqui sou estrangeira e, ao mesmo tempo, tudo é familiar. Não posso fugir, acabamos sempre encurralados. Como devo viver?” A identificação de Damiel com o estado espiritual de Marion é imediata. Era preciso que Damiel se tornasse mortal para salvar Marion e era preciso que Marion conhecesse Damiel para também salvá-lo de sua angústia existencial.

Teria que passar horas e horas e gastar laudas e laudas de papel para descrever a magnitude de Asas do Desejo. Por hora, deixo esta pequena introdução. Senão estragam-se as surpresas... Assistam e tirem suas próprias conclusões.

P.S.: Resenha publicada no site CineClube Casa Amarela

Fonte: Imagem em movimento

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