Lila lilás


(Minha flor, minha descoberta, meu mundo, minha Anantha, minha Lila. Sou como um guri. O guri que eu era, e que vivia a perambular pelos fundos da sala-de-aula, enquanto a Lila saltitava lá fora. E era um bem para mim o som, que varava a parede, dos sapatinhos amarelinhos dela. Eu a amava muito — para mim, amar era ver a garota sorrindo com uma fitinha nos cabelos soltos. Eu gostava dos cabelos soltos dela. E, presos, eu só via a fitinha e os olhos. Os dela eram negros. Nigérrimos. Sobretudo eu circulava, tímido, e não esbarrava nas cadeiras — porquanto, por vezes parecia tonto, perdido no descobrir o mundo. Estimulado pelo instante que achava ser só meu, invadia-me certa onda de não sei que espécie de lirismo — era gostoso aquele sentimento: mexia até com meus intestinos, e era doce a bile que a poesia que eu não sabia fazia. Mas a sirene tocava. Era um iooooooooóóóóóóóóóóónnnnn longo, ensurdecedor e molhado — lá pro fim ficavam os filetes nas orelhas da gente. Estivesse você onde estivesse, era arrancado de seu mergulho, qualquer que fosse seu mergulho, num papo, num silêncio, numa partida de futebol de salão na quadra cheia de gramíneas pois chovia e o céu nublado escondia o sol as nuvens pousavam sobre a serra azul acima de nossos cílios coloridos, ou mesmo se você estivesse apenas cantando baixinho para sua Lila lilás, é, a sirene te despertava, te acordava, te ia afogando num oceanozinho de melancolia e num marzão de timidez. Sim, eu era um guri. Calça azul-marinho. Camisa branca teimosamente de linho. Botões lindos e alvos. Quixutes da cor daquelas avencas da Cecília Meireles. Um guri. Ela usava fitinhas nos cabelos soltos. E era solta em minha prisão.)[6]

[6] Originalmente publicado com o título Ela usava fitinhas nos cabelos soltos, na revista literária Cobra n. 6, de Porto Alegre, em 1986.

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