Sonhos entrecortados*



" — Vânia — disse ela. — Olha, Vânia, foi tudo um sonho!
— O que é que foi um sonho? — perguntei-lhe.
— Tudo, tudo — respondeu ela. — Tudo quanto se passou este ano, Vânia. Por que teria eu destruído a tua felicidade?
E eu li no seu olhar: 'Podíamos ter vivido sempre felizes juntos!'." (Fiódor M. Dostoievski, in Humilhados e Ofendidos.)

Escrevo esta novela quando o sol desaparece, ou logo após seu nascimento, anunciando ao mundo novos pavores e delírios. Nestas horas, esqueço a saudade dorida, e, revivendo o amor, vivo.

Cabelo e barba, contudo, crescem assustadoramente. As noites passam brancas, povoadas de torrencial insônia e entrecortado sono. Penso, certas horas, que morri — notadamente quando Anantha evoca-me a imagem do rapaz com a flauta acompanhando os versos finais do poema da menina sardenta. Sonhos entrecortados. Repetidos. Um, em especial, surge, desenovela-se, e, indo-se e retornando nova vez, embaralha-se, confundindo-me. Geralmente é elaborado em noites chuvosas, de escassas estrelas, noites infestadas de ruídos, grilos e cães que uivam, lamuriosos. Luz opaca, amarela, na rua; sombras dos edifícios vermelhos. Gatos enfiados em touceiras de dálias. Som de sirenes num crescendo. Dois ou três veículos velozes, rumando para a cadeia, toda noite, carregando homens que perdem o sabor da chuva, o odor dos gravetos molhados e a ternura das folhas já não mais secas.

*trecho do VII capítulo da novela Anantha (Leia mais aqui.)

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