Graciliano Ramos*

Cárcere interminável

Obra póstuma de Graciliano Ramos reafirma a importância do papel intelectual de escritores frente ao eterno problema da intolerância

Paulo Paniago
Especial para o Correio
Embrafilme/Divulgação
Carlos Vereza, como Graciliano, no filme de Nelson Pereira: a narrativa como vingança
Graciliano Ramos teve Memórias do cárcere publicado no ano em que morreu, 1953. Não chegou a vê-lo lançado. Foi um dos mais lentos e continuados livros que escreveu. Ficou preso entre 3 de março de 1936 e 13 de janeiro de 1937, sem ter sido formalmente acusado. Foi embarcado num navio em Recife para o Rio de Janeiro, onde ficou na Casa de Detenção e depois na Ilha Grande. "É a vítima mais ilustre do governo Vargas", registra Wander Melo Miranda, professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais e responsável por supervisionar a reedição da obra em um só volume. No original, eram quatro.

Uma das primeiras preocupações do escritor: transformar personagens reais em obra, mesmo que obra de memória, supostamente "real". "Repugnava-me deformá-las", escreve, "dar-lhes pseudônimo, fazer do livro uma espécie de romance, mas teria eu o direito de utilizá-las em história presumivelmente verdadeira?". Talvez decorra desse excessivo pudor o eterno adiar da obra, enfim publicada depois da morte. Aliás, Graciliano é sujeito de pudores. Embarcado num navio pavoroso, em que urina e vômito criam camadas no porão onde estão os presos, ele se recusa a comer (mas não a fumar como louco), talvez até mesmo para evitar o uso das latrinas. Mas, por mais turva que lhe esteja a mente, não se furta a registrar, a produzir anotações.

O interessante da obra, adaptada em 1984 por Nelson Pereira dos Santos em filme protagonizado por Carlos Vereza, é exatamente o nível de minúcia a que chega. Embora esqueça algum nome aqui e acolá, e admita isso, não é realmente o nome do registro civil que conta, mas o modo como estar preso e ser aviltado ofende e humilha o escritor, que chegou tolamente a imaginar que teria a liberdade necessária para produzir alguma obra: diante das horas e nenhum compromisso, poderia se dedicar a escrever, imaginou, para depois deparar com as complicações de efetivamente estar preso.

Graciliano se vê forçado a admitir, depois, que era revolucionário "chinfrim", pois esperou a prisão anunciada em casa, sem arredar pé. Era o jeito formal de dizer que sempre foi dono de suas razões e não abdicou delas. "Não me acusavam, suprimiam-me", ele anota. Sua prova de resistência é escrever, a despeito de tudo e todos, até de si mesmo e das limitações físicas que se impôs. A secura, a análise severa, racional dos eventos deveria não render muita coisa, mas nas mãos de Graciliano Ramos vira matéria importante porque perscrutada de ângulos inesperados.

Sobral Pinto
Quando o escritor depara, na prisão, com um preso comum (não político, como ele) que o analisa como nenhum outro o fez, simplesmente por observar o comportamento repetitivo de arrumar a valise, mostra que a sabedoria humana se encontra nos lugares mais incomuns e nas pessoas mais improváveis.

O advogado que o vai defender: Sobral Pinto. Descobre, sem surpresa, que não há processo, não há acusação. "São uns idiotas", reclama. Depois alerta o escritor que, se fosse ele, Sobral, o chefe de polícia, o processo existiria. Graciliano pergunta onde estaria matéria para acusação, e ouve: "Nos seus romances, homem. Com as leis que fizeram por aí, os seus romances dariam para condená-lo". E olha que ele ainda nem havia escrito Vidas secas.

A operação toda é complexa: envolve memória, apontamentos interrompidos, depois retomados, destruídos e, mais tarde, recompostos pela memória, essa grande traiçoeira. Mas é ao narrar que Graciliano se vinga: da estupidez humana como um todo, em particular da polícia de Vargas, que lhe tolhe a liberdade. Ao final, anuncia ao diretor da Colônia Correcional que pretende escrever o livro, para ouvir o lamento: "A culpa é desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever". Que a obra tenha ficado sem o último capítulo, sempre por completar, dá idéia de que a resistência pela escrita é bem mais aberta do que se imagina normalmente. Graciliano continua a incomodar, com aspereza e inteligência.


MEMÓRIAS DO CÁRCERE
De Graciliano Ramos. Reedição com supervisão e posfácio de Wander Melo Miranda. Editora Record, 727 páginas. R$ 65.

O jornalista Paulo Paniago é Doutor em Comunicação e professor do Centro Universitário de Brasília (Uniceub)
* Fonte: Pensar, Correio Braziliense, 10 maio 2008

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