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Menina de ouro

Aos 10 anos, mesmo com dificuldades, moradora de Céu Azul já é uma campeã. A pequena faixa roxa treina agora para o próximo sonho — o campeonato internacional de caratê, nos Estados Unidos



Marcelo Abreu
Da equipe do Correio
Fotos: Kleber Lima/CB/D.A Press
Ingrid coleciona medalhas e troféus desde os 7 anos, quando conheceu e se apaixonou pelo caratê: talento, disciplina e perseverança
Júlio César ensinou a Ingrid o estilo shotokan: força, flexibilidade e movimentos rápidos
Aluna e professor treinam na rua da casa dela, em Céu Azul: humildade e confiança recíproca
Quanto vale um sonho? Talvez valha a intensidade de quem sonha. Talvez seja o que move, dá impulso, transforma, edifica. Talvez seja a essência da vida. Aos 10 anos, a pequena Ingrid Ferreira Souza começou a compreender que eles, os sonhos, existem. Torná-los reais, palpáveis, é a parte mais complicada dessa empreitada. Com tanta pouca idade, Ingrid também aprendeu muito mais: descobriu que a vida dela, literalmente, foi feita de luta. De luta e golpes fantásticos. De luz e escuridão. Também de movimentos bonitos, de força e flexibilidade. Foi feita de magia, mesmo diante da realidade em que vive. "Sei que é difícil, mas vou tentar. Eu posso vencer", ela diz.

Aos 10 anos, Ingrid é uma campeã. Coleciona troféus e medalhas, a maioria de ouro. É uma campeã da arte de sobreviver. Moradora do Céu Azul (GO), 45km de Brasília, a menina mora com a mãe e um irmão de 5 anos numa garagem. Tudo ali é improvisado. Por falta de pagamento do aluguel de R$ 80, atrasado há sete meses, o lugar está sem água e luz. Hoje, em qualquer lugar, por mais humilde que seja, é quase impensável que alguém viva sem água e luz. Para beber e cozinhar, a família conta com ajuda da boa vizinhança. O banho é revezado nas casas dessa mesma boa vizinhança. À noite, uma vela ilumina os cômodos. E a menina, como criança que tem direito de sonhar, dorme. E sonha. Sonha que ganha mais medalhas, troféus. Que as pessoas a aplaudem. E que a vida dela tem cor. Como a cor de sua agenda cor-de-rosa, toda enfeitada, onde conta seus segredos de menina que quer crescer.

A história de Ingrid é feita de acasos. Um dia, a mãe dela, Rosa Ferreira, hoje com 36 anos, foi trabalhar como auxiliar de serviços gerais numa escola mais ou menos perto dali, no Pedregal (GO). Lá, havia aula de balé e caratê. A mãe vislumbrou a possibilidade de a filha ter acesso aos treinos. Falou com a direção. E um acordo foi feito: ela faria faxina e poderia matricular a menina, sem pagar nada por isso. Separada do pai de seus quatro filhos (os dois mais velhos moram com a avó paterna), a mãe de Ingrid vibrou com a possibilidade de a filha aproveitar aquela única chance.

E a menina não a desperdiçou. Durante um certo tempo, tentou fazer as duas aulas. Mas logo se encantou pelo caratê. E disse a mãe, com honestidade: "Eu não gosto muito de balé". Rosa entendeu. E deixou a filha dar seus golpes e saltos. Ainda na escola onde a mãe fazia faxina, Ingrid encontrou-se com o professor Júlio César Fernandes, 33, casado, uma filha de 6 anos, morador do Céu Azul, faixa preta de caratê e atual presidente da Federação de Cultura e Artes Marciais de Goiás (Fecam).

De cara, Júlio César percebeu o talento da menininha que mal completara 7 anos. "Na primeira vez que vi a Ingrid, disse a mim mesmo: 'Ela vai ser campeã'. Senti isso não só pelo talento, como também pela dedicação e perseverança que mostrou", ele lembra. O primeiro contato foi decisivo. Júlio César passou confiança para Ingrid. Disse que ela seria capaz. A menina lhe devolveu a confiança depositada com determinação. Além daquela escola particular, o professor também dava aulas num projeto para crianças carentes, em Valparaíso. E ali ela o acompanhou. Junto com a mãe, inseparável companheira, Ingrid andava mais de 40 minutos até chegar ao local dos treinos.

Medalhas e troféus
Vieram os primeiros campeonatos. O goiano, em Goiânia; o mineiro, em Uberaba, e o brasileiro, em Sobradinho. Júlio César incentivou Ingrid a se inscrever em todos. Para conseguir o dinheiro da matrícula, a mãe deixava a vergonha de lado e pedia no comércio da redondeza. "De um em um real eu conseguia juntar o dinheiro. Ela foi a todas as competições", conta a mãe. O esforço valeu a pena. Ingrid sagrou-se campeã. Foram suas primeiras medalhas de ouro, ainda com a faixa branca. E não mais pararam. Ela passou imbatível às faixas seguintes.

Os treinos tomam a maior parte do tempo da vida de Ingrid, que estuda a 5ª série numa escola particular do Céu Azul. A vaga só foi possível graças a uma bolsa de estudos. Toda noite, depois que chega do trabalho de faxineira numa faculdade do Plano Piloto, Rosa leva a filha aos treinos. É assim, faça frio ou chuva. A caminhada é longa e em alguns momentos com riscos. Lá, sob o comando do treinador Júlio César, Ingrid faz o que mais gosta. "Ela não falta nem doente. Às vezes, vejo que ela não rendeu bem num determinado treino, mas só depois descubro que ela não estava bem naquela noite", ele conta.

Faixa roxa, a menina a cada dia demonstra mais talento. Desenvolve sua técnica de forma bem particular. Luta o shotokan, que se carateriza pela força, flexibilidade e velocidade de movimentos. Nesse estilo, os contatos são indiretos. O professor não tem mais dúvida: "Ela chega tímida, mas quando começa a lutar se revela. A Ingrid só precisa de ajuda para conquistar todos os seus sonhos".

Em casa, Rosa ajuda a filha nos treinos. "Viro o saco de pancadas dela", brinca a mãe. Ingrid confirma: "Até ganhar esse saco (aponta para um encostado num canto daquele lugar onde mora), era com minha mãe que eu treinava". Comovido, o professor comenta: "Ela é uma campeãzinha que corre atrás. Tem dom e batalha por isso". E ainda mais emocionado continua: "Muito desse esforço dela é para ajudar a mãe e irmão e dar uma vida melhor pra todos. É como se ela se sentisse responsável por eles". A menina de olhos bonitos apenas ouve. Ajeita os cabelos castanhos compridos, coloca uma fivela e pega suas medalhas. Olha-as como se olhasse a própria vida. Na verdade, em cada uma delas está o melhor de sua história.

Torneio mundial
As próximas batalhas da pequena campeã estão por vir. Em setembro, será realizada mais uma edição do Campeonato Brasileiro de Caratê, categoria 10 e 11 anos, a faixa etária dela. Ingrid não tem como chegar ao Recife. Em novembro, um desafio ainda maior: a competição será em Orlando, nos Estados Unidos. É o torneio mundial. "Ela tem todas as condições de competir de igual para igual, fazer bonito e trazer medalhas. A maior dificuldade é chegar até lá, já que vive numa situação extremamente precária", avalia o professor.

A menina do Céu Azul sabe disso. E sabe muito mais. Sabe como é viver numa garagem. Sabe como é viver sem água e luz. E sabe como é acertar a vida com golpes de caratê. "Eu só queria ajudar minha mãe pra gente ser feliz", ela diz, longe dos ouvidos da mãe. E confessa: "Quando ela sai pra trabalhar, eu choro. Penso na situação em que a gente vive e nas dificuldades que passamos. Penso que tudo podia ser diferente, que o mundo devia ser melhor".

Mas ela precisa enxugar as lágrimas. É hora de levar o pensamento para o próximo treino, a próxima luta, a próxima medalha. Corre para o diário com capa cor-de-rosa e conta ali, com letra bordada de menina de 10 anos, todos os seus segredos. Fala sobre os seus sonhos. Confessa que sente medo do escuro. Que é fã dos Rebeldes, que levou uma bronca da mãe. Que cuidou com afeto do irmãozinho João Pedro, quando ele adoeceu, e a mãe precisou trabalhar.

Revela, até, que um dia, de tanto ouvir as pessoas falarem que é bonita, pensou em ser modelo. Passou a olhar-se no espelho mais demoradamente e sentiu-se, pela primeira vez, bonita — como de verdade é. Em papel colorido, cheio de coraçãozinho, Ingrid escreve a realidade de sua vida em preto-e-branco. Sonha também sonhos tão secretos que não os conta a ninguém. Nem mesmo para seu diarinho. Quanto vale um sonho? Pode valer uma vida inteira. Ingrid é um bom exemplo disso.



Golpe certeiro

Quem puder ajudar Ingrid a participar dos próximos campeonatos pode ligar para o professor Júlio César (061-8153-1301); e Rosa Ferreira, mãe da campeã mirim (061- 9181-7890).

Fonte: Correio Braziliense, 23.05

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