Murilo Salles e Clara


Novo filme de Murilo Salles reflete sobre as angústias da geração ligada à internet

Sérgio Moriconi
Especial para o Correio

Cinema Brasil Digital/Divulgação
Juliano Cazarré encara leandra leal: brasilienses desgarrados em São Paulo
Há tantas coisas que se pode dizer a respeito de Nome próprio que fica difícil se deter em apenas um de seus muitos e interessantes aspectos. Para os espectadores de Brasília é quase inevitável comparar o novo filme de Salles com os dois últimos da prata da casa José Eduardo Belmonte, o penúltimo A concepção, mas especialmente o novíssimo Meu mundo em perigo. Estão presentes em Nome próprio vários dos atores costumeiramente utilizados pelo jovem realizador candango, entre eles a atriz-musa Rosanne Mulholland. Não parece mera coincidência. Muito provavelmente – já que Nome próprio e Meu mundo em perigo foram realizados quase que simultaneamente – Salles viu A concepção e intuiu que parte do elenco de Belmonte servia bem para aquilo que estava pretendendo fazer ou dizer.

De uma geração diferente de Belmonte, Murilo Salles aparentemente vê de fora o existencialismo "morbozo" da protagonista Camila (Leandra Leal), muito embora o filme seja narrado, todo ele, como o relato/diário interior da personagem. O filme é uma adaptação dos livros Máquina de pinball (2002) e Vida de gato (2004), de Clarah Averbuck, escritora gaúcha. Seu blog chegou a ter milhares de acessos diários, incentivando-a a levar adiante um trabalho em que se desnuda por completo, compartilhando com internautas anônimos uma intimidade ao mesmo tempo libertária, angustiada e despudorada.

Pelo que vemos no filme de Salles, Camila/Averbuck é um rescaldo da contracultura. Lê Leminski, Charles Bukowski e seu discípulo John Fante. Alimenta-se do álcool e do tabaco, freqüenta os botecos pés-sujos, também os alternativos, assim como – e principalmente – o não-lugar da net. Salles reflete sobre a geração conectada de Camila. Sobre a nova e paradoxal solidão digital. Quantos mais amigos fazemos na rede, mais nos sentimos sós e desamparados. E os afetos, como é que ficam? Nome próprio investiga a intimidade de Camila. No início do filme, ela é colocada porta afora do apartamento do namorado que a havia flagrado na cama com outro. Na lógica dele, intuímos as qualificações de adúltera e corno. São termos que para ela não dizem nada. Se ele pôde comer todas as menininhas que quis em Brasília (origem das personagens), por que ela não pode comer quem ela quiser?, argumenta Camila.

Pertinente num texto de Nelson Rodrigues, pilar da moralidade burguesa, a infidelidade é uma galocha anacrônica para aqueles que viveram a revolução sexual dos anos 1960 e para uma parcela da cybercultura contemporânea. "Goze sem culpa", diziam os manifestantes de maio de 1968. Esse parece ser também o lema de Camila em sua busca de um príncipe encantado virtual que se materializaria, como que por encanto, nos seus "simulacros de realidade" da rede. A realidade para Camila é sempre uma representação, às vezes uma representação da representação. Nem os estruturalistas franceses nem os teóricos da pós-modernidade puderam imaginar um tal esgarçamento do real. O concreto, o sólido, transformados, hoje, numa gaze porosa de algodão.

Não é de hoje que a alienação do real está presente na obra de Murilo Salles. Nunca fomos tão felizes, baseado numa obra de João Gilberto Noll, coloca essa mesma questão, apesar do contexto ideológico e histórico inteiramente distinto. Neste filme, realizado em 1983, o jovem protagonista (assim como Camila, de Nome próprio) está confinado no espaço asséptico e desumanizado de um apartamento parcamente mobiliado do Rio de Janeiro, colocado ali pelo pai, um clandestino da luta armada dos anos 1970, que o retira de uma escola religiosa rural sem lhe dar qualquer satisfação. O rapaz havia sido colocado nessa escola enquanto o pai cumpria pena na prisão. Os dois não se viam há muitos anos. No apartamento, ele continua quase sem ver o pai e, sem referências, não entende a realidade que o cerca, vendo-se, portanto, constrangido a descobrir a sua própria identidade.

A mesma "alienação do real" está presente nos ótimos Como nascem os anjos e Seja o que Deus quiser. Um dos focos dessas duas obras construídas como fábulas é a impossibilidade de diferentes classes sociais se perceberem umas às outras. Em Seja o que Deus quiser, Murilo Salles acrescenta a preocupação com a cultura virtual. Sexualmente desreprimidos, geração clubber de classe média e favela se misturam, manipulam conteúdos em sites, mistificam a realidade e se dão bem. O título do filme faz uma espécie de grito de alerta contra um comportamento social que ignora a moralidade construída e aceita pelas sociedades ocidentais, já que a dinâmica social e das novas tecnologias engendraram lógicas mais fortes do que a ética.

Passaram as ideologias, seguem os problemas. Sai o existencialismo sartreano de viés marxista, entra o existencialismo do "eu mesmo". Mas o mal-estar existencial de Camila é de outra natureza. Ele não é a orfandade do bezerro desmamado da cultura burguesa. Ele é a orfandade de uma não-coisa. Camila vive num mundo que perdeu um cânone comum, que pulverizou referências, estímulos e, finalmente, identidades. De alguma maneira, Nome próprio respinga os cacos dos ideais de maio de 68 na circunstância nova da realidade virtual do cyberespaço. Esta realidade, supomos, mais escraviza do que liberta. Aparentemente morto e enterrado pelo triunfalismo neoliberal, o velho conceito marxista de alienação volta mais vivo do que nunca, depois de noivar e casar com os fantasmas da realidade virtual.

No novo filme de Salles, nada poderia ser mais ilustrativo desse fenômeno do que a cena do adolescente nerd que fotografa a genitália de Camila e se masturba contemplando-a a partir do computador, enquanto ela, Camila, dorme na cama ao seu lado. O real e sua aparência, o eu e outro alguém, um mar gasoso, intangível, que Salles expressa inserindo fragmentos do texto de Averbuck sobre a imagem do filme (este também representação) e duplicando, literalmente, Camila. As duas Camilas, a que se imagina real e a que ela imagina ser a representação dela, vão ter que saber lidar com a vertigem desse impreciso mar.

NOME PRÓPRIO
De Murilo Salles. Com Leandra Leal, Juliano Cazarré e Rosanne Mulholland. Em cartaz no Embracine Casa Park 4. Veja horários no Roteiro.


Fonte: Correio Braziliense, 26.07.2008

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