Houaiss Joyce CV


Um dos posts do CV:

Caetano Veloso disse:

Novembro 13th, 2008 at 5:55 am

Heloísa,
que bom que não foi por raiva de mim que você demorou a reaparecer. Embora estivesse revoltada com minhas voltas em torno do “aleijão”. A música “A Outra banda da Terra” é do início dos anos 80. Mas não sejamos tão lineares. O amor que demonstrei ali só fez crescer desde então. Nem por isso deixei de escrever o que escrevi em “Verdade tropical”. E não vejo nenhuma incompatibilidade entre o que ali disse (ou a explicação que esbocei aqui) e o fato de grandes inteligências e obras se desenvolverem em falantes do erre retroflexo. É preciso separar duas coisas: em “Verdade tropical” narro o que se passou e o que pensei a respeito. Aqui somei à afirmação de que amo o erre retroflexo e odeio quem deseja humilhar os outros à confissão de que não creio ser possível, nem benéfico, querer-se dizer que os sotaques todos se equivalem. Ou que todos os aspectos de todos os sotaques têm peso idêntico. O mesmo para as variações gramaticais. Amo o sotaque nordestino e sei que ele não é empecilho para o desenvolvimento de um Suassuna, de um Gilberto Freyre, de um João Cabral. Mas a diferença real que ele representa não se nega. A consciência da difereça de status pode servir de inibidor ou de estímulo (ou ambos). Mas não suponho ser bom que se finja que ela não existe. Mas, como disse, ainda não voltei ao texto do meu livro. Gosto muito do pessoal que escreve aqui. Alguns às vezes mais que muitos. Você, Heloísa, eu adoro. Adoro sua clareza, seu cuidado, sua inteligência calma, tudo. (Amei o modo como você se referiu ao comment de Marcelo Porciúncula sobre axé music.) E claro que sei que a língua não é uma só. Os falantes do erre retroflexo são tão brasileiros quanto os outros. Alguns podem nascer e morrer sem nem saber que há quem ache estranho seu jeito de falar. Hoje isso é mais difícil de acontecer. Quando o falante se vê no quadro geral, encontra a estranheza que causa e sente a pressão da tendência para o padrão (ditado pela concentração de poder das áreas privilegiadas econômica, política, historicamente - sendo que esse privilégio, aliás, tem conseqüência na formação do sotaque dessas áreas). Não há nada de mal em você, por exemplo, não gostar do inglês dos pretos americanos (que eu adoro), embora justamente estes sejam objeto de discriminação. Se você fosse descrever, francamente, que aspectos das pronúncia ou da prosódia ou da sintaxe desses pretos a desagradam, dificilmente estaria a salvo de cometer algo que parecesse (ou fosse, como nunca disse que não é) tão ofensivo quanto as palavras que usei ao descrever o drama do erre retroflexo no Brasil. Não se trata de você mudar minha forma de pensar. Com um bom argumento, isso sempre é possível. Mas o fato é que não discordamos. Apenas nos equivocamos. Precisamos limpar a área. Você diz que antes cria ser a fala determinante sociocultural e que aprendeu (com surpresa) ser possível um falate do erre retroflexo se tornar doutor, cientista e poeta. Pois eu, que venho de uma cidade pequena do interior da Bahia, nunca acreditei nisso. Nunca tive que passar por esse aprendizado. Minha canção “A Outra Banda da Terra” pôde ser escrita antes de “Verdade tropical” porque eu nos anos 80 já podia achar bonito o sotaque do interior de São Paulo - coisa de que você ainda hoje (como você mesma declarou) não é capaz. Escrevi tudo aquilo no livro porque me sentia livre do preconceito, embora reconhecendo-o na sociedade em que vivo (em mim mesmo) e não desejando denegá-lo. Esse medo de dizer “falou errado”, “mulato”, “judiaria” é, muitas vezes e em larga medida, sintoma de dificuldade íntima de aceitação da alteridade. Vamos nos aramar melhor para enfrentar quem gosta de humilhar, inibir, torturar. Estar livre de um preconceito não implica não reconhecer em que medida ele passa também através de você.
Vai aqui outro beijo terno e doce, embora tenha falado sério.

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