Proteção. Cadê?


Conceição Freitas

Quando Ana Lidia foi assassinada, em 1973, muito provavelmente por uma turma de riquinhos da cidade, Brasília levou o primeiro grande banho de realidade. A ilha da fantasia alimentava, no coração da elite, uma horda de drogados e perversos. O assassinato de Mário Eugênio, em 1984, foi mais um solavanco: a capital do país e da arquitetura moderna, toda planejada para o bem-viver, acolhia um esquadrão da morte nascido dentro das polícias Civil e do Exército. Quando Marco Antônio Velasco, em 1993, foi assassinado, Brasília levou mais um safanão: o Plano Piloto estava sendo dominado por gangues de classe média. A bandidagem não nascia só em Ceilândia, como se pensava à época (e como até hoje muitos ainda acreditam, tenham certeza disso). Quatro anos depois, quando os cinco rapazes de classe média queimaram o índio Galdino no ponto de ônibus, Brasília definitivamente perdeu a ilusão: alguma coisa de muito grave acontecia no roteiro boas-escolas- clubes-churrascos-gilberto. A cidade do "você-sabe-com-quem-estáfalando?" tinha se transformado na capital do "vou-te-mostrar-comquem- você-está-falando". (E o índio Galdino nem teve a oportunidade de ouvir. Estava dormindo.) A foto de um garoto saindo de uma Mercedes publicada na edição de quinta- feira do Correio foi mais uma rasteira na ilha da fantasia. A cidade que tem um dos mais refinados públicos de cinema- teatro-exposições-espetáculos, proporcionalmente uma das maiores no consumo de bens culturais, a cidade que abriga a casta do funcionalismo público, é uma cidade por onde circulam Mercedes pedófilas. Faz tempo que Brasília tem uma grande ferida bem no lugar onde ela nasce, no cruzamento dos dois eixos, o sinal da cruz. Mas foi preciso que a Érika Klingl e o Iano Andrade parassem para ouvir, ver e fotografar vítimas e algozes para que a cidade, novamente, ficasse diante de si mesma. Mas não faz tanto tempo assim que os moradores do Plano Piloto começaram a conviver com os miseráveis e só nos semáforos. Antes disso, as asas e os eixos eram o paraíso da arquitetura e do urbanismo modernos. Poucos carros, miseráveis ao longe, a cidade era toda da classe média e dos mais acima. A Rodoviária era (e é) o ponto de chegada e partida dos que não têm carro e dos que não têm nada… (Interrompi este texto para tomar um café e para dizer à Érika que ela mexeu profundamente com esta cidade, quando ela me contou que muitas das crianças que deram depoimento a ela foram espancadas nesta madrugada pela Polícia Militar. Policial trata menino de rua como bandido e, como eles estão entre os acusados da prática de pedofilia, coisa bem pior pode acontecer. As crianças não precisam de polícia. Precisam da proteção do Estado e, neste caso, de proteção urgente.)

Fonte: Correio Braziliense, 27.09.2008

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