Zoada


Tento escrever, mas enorme barulho ecoa pela casa, pela rua, por toda parte. Acordo — já com a zoada. Nem me lembro se por causa dela. Sonhava, é certo. Lavo o rosto — e o barulho. O vidro traz a ressonância do ruído que não sei de onde vem.

Minha casa fica no fim de uma das ruas largas do condomínio, pouco transitadas. Raras carroças e bicicletas é que vêm dar ali, de quando em quando.

Vou até a varanda e espreito o aparentemente calmo mundo. As folhas da árvore balançam com o vento morníssimo. O sol é bom, aquece-me o rosto, anima-me a sorrir.
O café, os ruídos.

As louças começam a trepidar. O pão esfarela sozinho. O leite e a nata dançam. Levanto-me. Deixo a mesa, busco o romance que leio. Não acho. Começo a considerar que a ausência do silêncio poderá, decerto, quebrar a paz que sempre polira o tempo por ali. A vida sossegada que levo periga?

Procuro em seguida o tomo pesado de Pedro Nava. Contudo, esqueço-me dele, e, dando meia-volta, sento-me no sofá macio.

Agora, a caminhada, os pássaros. Os rumores retornam, a cada quinze minutos — descem, pousam, desaparecem. Têm a natureza, as serras, as altas rochas, os penedos, os contrafortes onde retinir, mas insistem em perseguir-me, ao que parece, pois os raros passantes, as poucas mulheres esquálidas nos peitoris das janelas amarelas, parecem tão normais quanto ontem ou há um ano.

A lembrança do chá cítrico que tomo diariamente às onze. Mas ainda falta meia hora para as onze, e estou longe de casa. O ruído. Os pardais emudecem. As borboletas azuis, antes faceiras, quedam-se, vigilantes, agora, nas touceiras de bambu — poucas se aventuram no baile gracioso, acima das dálias: as ondas do estranho som parece fazem-nas perder o controle do vôo e as carregam para longe.

Agora o relógio indica onze em ponto. Estou ainda a cerca de um quarto de hora de casa.

O som voltará? Aperto o passo. Mas distraio-me cumprimentando a vizinha que rega a grama verde (rezará, ao meio-dia, e chorará, copiosamente, ao fim da tarde — sempre assim, a Anália).

A água ferve, borbulha. Cinco minutos depois, estou de novo sentado, agora ao lado do antigo rádio, que evoca Franz Liszt, em ondas curtas. O chá cítrico, o vento leve balançando a cortina, um quase-sono sendo preparado para mim nas entranhas secas do tempo, na capital da República.

Meio-dia — chega a empregada: os tamancos rangem. A ginga. O riso largo. O almoço será preparado.

As ancas. O barulho. O cheiro do café exilara-se no ar, nos móveis, tomou o tempo, enfim — e a lembrança da indústria de torrefação no interior da Bahia, processo que expandia o aroma do café bom, do café-preto de que fala Jorge de Lima, pelos telhados dos quarteirões até a velha casa de minha avó, e acima das mangueiras altas, e abaixo das nuvens cruzadas por Boeings diários (um achado o ver a listra de fumaça das poderosas turbinas).

A empregada se encolhe ante os ruídos, temerosa. Eu não.

Só vou perturbar-me com o alarido quando começo a compreendê-lo: vem de tempos antigos; vem de frestas nas janelas dos dias, dos meses e dos anos; perpassa decerto são-joões, carnavais, natais sem presentes e adorações ao Senhor dos Aflitos, no Cantinho, vilarejo que acolhe o povo no dia 2 de julho com danças, música de sanfonas luminosas, litros de cachaça, centenas de botes de vela na Igrejinha e quilos de poeira egressa do barro vermelho, apesar dos carros-pipa derramarem com profusão a boa água do rio Grande na praça; vem a barulheira, a murmuração (começo a conhecer a zoada) de velhos espelhos partidos, de penteadeiras de ébano; vem de enciclopédias; vem, como a imaginação de Dom Quixote, transfigurada nas peripécias dele e do fiel escudeiro, de tomos antiqüíssimos, habitados por cavaleiros e armaduras; vem do quadro do avô, de longas orelhas; vem do armário e das compoteiras de caju; vem do piano que tocava na igreja, roubando-me o sono durante a missa, dando-me por vezes regozijo pela harmonia das notas, pela clareza das ressonâncias, pelo eco que provocava pelos corredores do colégio Padre Vieira quando (eu me lembrando do piano) ele lembrava-me o poder musical, o brilho meticuloso, o cheiro farto do verniz; e era como um pós-eco a voz de Nezinho — distante primo que caiu nas garras da paralisia infantil [1] — a tocar os sinos da Catedral — nos corredores do colégio, quando ressoava, quando dele eu me lembrava: o eco perdido do piano tocado a dedos primorosos pelo homem que não fora padre mas quisera ter sido, ou, muito antes, até não mais podê-lo, pela fina professora D. Iazinha, íntima de centenas de partituras, professora serelepe do ginásio onde os estudantes-meninos, puro hormônio, viam fogo na voz da senhora professora amante da música, labaredas de curiosidade infinita, sede de saber, ânsia de novas chuvas (que esta trazia, ao menos para o poeta noviço, um absurdo contentamento, uma enxurrada de esperança e ternura por tudo e todos, e aquela vontade de avançar o alpendre-tarde lendo a história da viagem de Marco Polo ao Oriente).

Mas ainda acho que devo manter-me neutro à confusão que a zoada vem, pouco e pouco, causando...



[1] Andava arrastando os joelhos nas pedras do calçamento da rua, da casa dele até a Igreja, que, felizmente, não era longe: distava cerca de cinqüenta metros da velha casa de alpendres sem-fim.

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