O amor, na serra*


Era princípio de manhã. Entre lua e sol o mundo.
A maré baixa. Pássaros raros. O vento leve.
Então, suspira ela, evadindo-se de eventual inoportuno enfado: “Como ser triste com tanta explosão de luz, cor e mistério, Deus meu!?”
A noite, após o caudaloso amor feito, havia sido branda. Nem minúsculo fio da inquietação que a toma na cidade.
Sim, macia e fácil a noite. A clara luz do dia agora a banhar o corpo dele, que dorme.
Salta da cama e percorre a varanda onde crisântemos teimam em manter olhos-pétalas abertos — e as violetas despontam! Pensa lerdamente nas múltiplas visões, nos traços malriscados da madrugada epíloga, nos desenhos acima do mar e dentro dele, principalmente. Vira, da janela, estrelas e o hálito do oceano cingindo-as. Suspira, molemente, e caminha até a praia. Gostava de ficar horas sorvendo o movimento das ondas, o fluxo e o refluxo, o serpenteio delas. A areia, o mar meio verde-escuro, meio negroalvo.

***

De volta à casa. Os pássaros, mirados do alpendre, são borboletas ou flores novas na primavera. Adejam sobre os telhados úmidos do orvalho.
Ele dorme, ainda.
Ela, vivacíssima, passeia pela varanda e se lembra da infância. Na noite junina de aluá e batata assada ao pé do angico feito fogueira, ela era um relâmpago, um destempero de lenho raro em brasa, tal o contentamento, e os passos, e os saltos, e a alegria da dança.
O pensamento se perde. A manhã com brisas. Senta-se na velha cadeira; balança; os ruídos lembravam a árvore onde ela subia com o amigo de infância, quando chupavam laranjas verdes, até enfraquecer o esmalte noviço dos dentes.
Pensou, em seguida, que era tempo de ler um capítulo de “A la Recherche...”. Depois viria a obsessiva vontade de sentir o poema nos olhos de alguém — estando ao fundo o mato infinito, o bosque tomado por mangueiras, onde fumaram e rolaram nos seixos macios.

***

Mas um sabiá, esquivando-se de um gavião-de-penacho, a faz desviar o pensamento para um poema do namorado. E daí para o recordar os afagos e as carícias demoradas, um salto. Como tinha sido bom. Como é bom! As mãos fortes do homem que ama, a voz viril — o urro, o espasmo dela, os lamentos que varavam as lonjuras das vilas perdidas da Amazônia, acima dos rios e pântanos, acima dos trágicos odores da Zona Franca. Ele dorme. Inebria-se ela, no brando recordar: o vai-vem, o gozo prolongado, o sorriso dele.

***

Agora feita mulher, quase aos trinta, na varanda.
As palmeiras que o vento tremula. O verde delas evoca... evoca, engano vil!, não era verde a serra de penedos salientes; não, não era verde, quando esteve com o primo na perigosa estrada do aeroporto, íngreme como a avenida celestial apocalíptica. Fazia um calor insuportável. Os bancos quentes do carro, a alavanca dourada do câmbio roçando-lhe as coxas, por dentro, enquanto ele brincava com as nádegas que ela oferecia a ele e ao vento áspero que açoitava qualquer forma viva da caatinga — em silêncio, fora de si, o escarlate infinito das orelhas invadia os peitos em perigosa precipitação de delírios, para, após invejáveis acrobacias no colo virgem, possuir toda a complexa engenharia daquele corpo vigoroso que brotava nela; ela lembra, sim, ofegando ais e tremendo toda a carne, do movimento do próprio desejo, afogueado, em cada nervura dos membros, do abdômen e do sexo expectante. Calor. Arbustos secos. Chamas! Lagartos e joaninhas áridas despiam-se também, por certo, perto dali, emulados pelo frescor do pranto dela, embevecida com o enlace, na alvura dos dezoito anos. Na hora do gozo fecundo, um avião sobrevoou as pedras seculares, varou nuvens inóspitas, prenhes de águas raras, e se foi para o Rio. Ele, moço viçoso; ela até então eternidade de delírios e vastidões de regozijos na solidão das noites sob os caibros da casa velha. Por certo, vivenciaram, naquela tarde de grasnidos de corujas assustadas e algazarra de preás no coito, o momento mais lúdico de toda existência deles.


*Barreiras, Bahia, 1986. A serra, íngreme, evocava histórias da Segunda Guerra Mundial. O Fusca amarelo, à segunda marcha, avançava. No meio do caminho, eu e ela descobríamos o reino mágico dos encantos, a glória do encontro.

Comentários

Maravilhoso amigo...
Redundante eu? não... Sincera e saudosa de sua amizade e das poesias eternas!
Amarei declamar isto!
Beijos beija-flores!
Luiz de Aquino disse…
Beleza, Siô Lafa!
Belíssima prosa poética a retratar, com a plasticidade necessárias, os sentidos e os sentimentos de um instante nobre!
Ah, esse mágico mundo das letras e das lembranças!

Luiz de Aquino
Titio, ficou legal o esquema das corujas, das préas , da procura dele e dela, alma que buscam, encontro de corpos, procura afins, ou seja nesse zoológico encontramos quem realmente somos vida, amor,esperança e fé além do que almejamos tudo numa madrugada. Brincadeiras que aprendi com os Titios.

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