O labirinto de Borges
Edição bilíngue reúne sete livros de poesias de um dos gigantes da literatura universal Alexandre Pilati Especial para o Correio
A sombra, a partir do que de relance vimos acima, estende-se como um estigma sobre os versos do argentino e se configura como um dos signos fundamentais dos livros de poemas do "tempo de madureza" do Borges poeta. Tais livros agora são reunidos no volume Poesia — Jorge Luis Borges (2009), que integra a coleção Biblioteca Borges, da editora Companhia das Letras. Seja bem-vinda esta edição bilíngue que reúne sete livros de poesia do autor, publicados originalmente entre 1969 e 1985. A edição dá sequência ao projeto de publicação das obras do bruxo portenho e, de modo especial, completa uma mirada ampla sobre sua poesia, estabelecendo um contraponto à já publicada Primeira poesia (Companhia das Letras, 2007), que apresenta uma reunião de livros de poemas publicados nos anos 1920. No contraponto, entre as frestas dos versos, quando postas especularmente face a face, madureza e juventude poética revelam dois Borges que vivificam o problema do qual sua poesia é a mais inquietante configuração. Um problema no seu caso enfrentado com o talento e a coragem que separam o grande autor do mistagogo. Sendo o gênero lírico aquele que mais nevralgicamente apresenta a dimensão das contradições, é na Poesia madura de Borges que seu problema se impõe como um inexorável desafio crítico. No conjunto de textos, cuja primeira coletânea remete a um não tão longínquo assim 1969. Nesta altura do século, digamos com risco de tautologia: Borges já era Borges. Mais do que isso: Borges sabia bem o que era ser Borges. Para alguns, talvez até para ele mesmo, isso quereria dizer um perfeito exemplar da pós-modernidade. Borges chegara a ser, assim, o próprio estilo clássico-moderno que seria preciso copiar pela plena poesia da maturidade, cujo destino estaria já traçado e acabado. Notemos que esse caráter de acabamento é assumido pelo próprio projeto editorial, que considera esta produção madura "a" poesia borgeana, acabada, perfeita como um "aleph", enquanto a dos anos iniciais não passaria de "primeira poesia", momento de aprendizado, cujo horizonte seria uma futura superação. Tudo como a ocupar lugar em certa equação mística que sempre impôs algum véu à leitura do poeta argentino. Essa poesia madura apresenta traços, em termos de conteúdo ostensivo e estrutura aparente, que confirmam o "mito Borges", recontado por ele mesmo. Estão ali elementos como a escavação genealógica do gênio do poeta; o culto do homem de letras cosmopolita, cujo mundo (último e primeiro) é a biblioteca e seu emaranhado de labirintos; a literatura que se reforça e se exibe como desvencilhada das práticas sociais; uma originalidade que se apoia fortemente nos meandros impalpáveis, mas não menos fascinantes, do terreno do inefável. Tudo isso são feixes que atravessam não apenas a expectativa dos leitores de Borges acerca de sua obra, como também o tônus poético cosmopolita que a custo ele próprio forjara e que ele sabia ser absolutamente necessário replicar, a fim de dar continuidade a um projeto de universalização do ponto de vista literário periférico sob o signo da "espiritualização da poesia". Diríamos, mais uma vez, que aqui se trata de uma pauta "pós-moderna" — aquela a que os livros de poemas publicados entre 1969 e 1985 respondem, reforçando a posição da literatura de Borges como uma espantosa e mágica epifania do supranacional canônico. Entretanto, é curioso como essa poesia, pós-moderna em relação ao próprio argentino, ganha ainda mais vida e impõe ainda mais labirintos sob o prisma enunciado pelo crítico italiano Alfonso Berardinelli. Segundo ele, a pós-modernidade de Borges é "carregada de história e é ambientada familiarmente numa tradição secular, tornada de novo acessível em todas as direções", isso ainda que o poeta, no prólogo à sua Antologia pessoal, reconhecesse que o que mais poderia perturbá-lo e envergonhá-lo seria a presença da "cor local" em sua obra. A avaliação de Berardinelli parece contraditória em relação ao objetivo, reforcemos sempre, muito bem-sucedido de Borges de aderir a uma linguagem poética de superação do localismo e de uma diluição delibera no cosmopolitismo. No entanto, ela é coerente com a premissa crítica de que uma linguagem (por pura e inefável que seja) não se forja senão dentro de condições históricas. É na fenda das contradições deste mistério (bem mais palpável) que se monta a poesia madura de Borges, levando-nos a leituras bem mais labirínticas do que aquelas que compram de cara o jogo de cosmopolitismo ostensivo do autor. No prisma das contradições entre local e particular, serão melhor aproveitados os mistérios de uma voz lírica que diz sobre sua cidade: "O que será Buenos Aires?/ [...] É o cômodo da Biblioteca, no qual descobrimos, por volta de 1957, a língua dos ásperos saxões, a língua da coragem e da tristeza". E também aproveitaremos o dilacerado resgate efetuado pelo olhar do homem culto e refinado do grande símbolo nacional, desparticularizado, alçado à condição dolorida do isolamento humano à ocidental em "O gaúcho": "Foi tantos e hoje é uma quieta/ Peça que move a literatura". Um tipo sobretudo humano, que nunca teria dito, segundo o poeta, "sou gaúcho", mas que se integrou ao cosmos pela mais funda solidão humana. Este movimento de tensões, entre o cosmopolita e o nacional, é o tema da crítica Beatriz Sarlo. "Não existe escritor mais argentino do que Borges: ele se indagou, como ninguém, sobre a forma de fazer literatura numa das margens do Ocidente", diz Sarlo em Jorge Luis Borges — Um escritor na periferia. Artefato místico A poesia como artefato místico é um dos elementos dessa necessidade ocidentalizante dos versos de Borges, que, no entanto, não perde a noção de que um poeta trabalha sempre em "seu minucioso labirinto inútil". O reforço do elemento etéreo do ocidente não deixa de ser também um sintoma de que o poeta junta cacos de mitos, na tentativa, malograda sempre, de restituir ao mundo da alienação e da reificação os elementos do sagrado. Um sagrado que, no poeta argentino, sempre é mundano, pois consciente de que "a vida não é um sonho, mas pode/ chegar a ser um sonho", num verso em que cita Novalis. As ilusões de Borges não compactuam com o ilusionismo fácil. Elas emanam de um grande autor que na poesia soube como poucos exibir o encantamento poético num molde que não elide as exigências da contraditória realidade periférica. Sobre a obra de Borges, o brasileiro Ferreira Gullar faz uma curiosíssima afirmação: "Entendo que a realidade é às vezes tão insuportável que a gente só pensa em escapar dela. Borges é isso. E é bem latino-americano. Mas como a malária". Este é o labirinto latino-americano que as leituras de reforço ao mundo místico de Borges rejeitam, quiçá por temor. Um temor de encontrar-se com o ponto de partida histórico (seria impróprio sonhar com luta de classes?) dessa elaboração poética de imenso valor (latino-americana como a malária?). Temor de ver, nesse ponto de vista, um espelho que devolve interrogação e alteridade a quem o contempla. Perguntemos, então, com Borges: "Por que persistes, incessante espelho?". DOIS POEMAS Elegia da pátria De ferro, não de ouro, foi a aurora. Forjaram-na um porto e um deserto, Mais uns tantos senhores e o aberto. Espaço elementar de ontem e agora. Veio depois a guerra com o godo. Sempre o valor e sempre a vitória. O Brasil e o tirano. Aquela história Desenfreada. O todo pelo todo. Datas vermelhas dos aniversários, Pompas de mármore, árduos monumentos E pompas de palavra, parlamentos, Centenários e sesquicentenários, São apenas a cinza, a menor flama Dos vestígios de uma antiga chama. De A moeda de ferro (1976) A soma Ante a cal de uma parede que nada nos impede de ver como infinita um homem assentou-se e premedita traçar com rigorosa pincelada na alva parede o universo cabal: portas, balanças, tártaros, jacintos, anjos e bibliotecas, labirintos, âncoras, o infinito, o zero, Uxmal. Povoa de formas a parede. A sorte, que curiosos dons reparte o gosto, permite-lhe dar fim a sua porfia. No momento preciso de sua morte descobre que essa vasta algaravia de linhas é a imagem de seu rosto De Os conjurados (1985) Alexandre Pilati é doutor em literatura brasileira e poeta, autor de Prafóra (7Letras, 2007) Fonte: Correio Braziliense, 30.05.2009
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