Alarido e fio da meada...*


Só vou perturbar-me com o alarido quando começo a compreendê-lo: vem de tempos antigos; vem de frestas nas janelas dos dias, dos meses e dos anos; perpassa decerto são-joões, carnavais, natais sem presentes e adorações ao Senhor dos Aflitos, no Cantinho, vilarejo que acolhe o povo no dia 2 de julho com danças, música de sanfonas luminosas, litros de cachaça, centenas de botes de vela na Igrejinha e quilos de poeira do barro vermelho, apesar dos carros-pipa derramarem com profusão a boa água do rio Grande na praça; vem a barulheira, a murmuração (começo a conhecer a zoada) de velhos espelhos partidos, de penteadeiras de ébano; vem de enciclopédias; vem, como a imaginação de Dom Quixote, transfigurada nas peripécias dele e do fiel escudeiro, de tomos antiqüíssimos, habitados por cavaleiros e armaduras; vem do quadro do avô, de longas orelhas; vem do armário e das compoteiras de caju; vem do piano que tocava na igreja, roubando-me o sono durante a missa, dando-me por vezes regozijo pela harmonia das notas, pela clareza das ressonâncias, pelo eco que provocava pelos corredores do colégio Padre Vieira quando (eu me lembrando do piano) ele lembrava-me o poder musical, o brilho meticuloso, o cheiro farto do verniz; e era como um pós-eco a voz de Nezinho — distante primo que caiu nas garras da paralisia infantil* — a tocar os sinos da Catedral — nos corredores do colégio, quando ressoava, quando dele eu me lembrava: o eco perdido do piano tocado a dedos primorosos pelo homem que não fora padre mas quisera ter sido, ou, muito antes, até não mais podê-lo, pela fina professora d. Iazinha, íntima de centenas de partituras, professora serelepe do ginásio onde os estudantes-meninos, puro hormônio, viam fogo na voz da senhora professora amante da música, fogo de curiosidade infinita, sede de saber, ânsia de novas chuvas (que a chuva trazia, ao menos para o poeta noviço, um absurdo contentamento, uma enxurrada de esperança e amor por tudo e todos, e aquela vontade de avançar o alpendre-tarde lendo a história da viagem de Marco Polo ao Oriente).

* Andava arrastando os joelhos no calçamento da rua, da casa dele até a Igreja, que felizmente não era longe: distava uns cinqüenta metros no máximo.

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